4 de jun. de 2010

Máscaras da manhã. (Máscaras del alba.)

   Continuo a missão de traduzir Octávio Paz. Gosto de suas imagens solares/surreais e, sobretudo, do ritmo dos seus versos livres. É poesia para se ler sem preocupações semânticas e de maiores compreensões e nexos. Enfim, ganha mais quem mais se larga ao fluir das imagens e musicalidade - depois pode se tentar alguma análise ou interpretação. Aí é entrar na esfera psicanalítica do sonho e em sua relação com o modus operandi dos surrealistas - com a reserva da não-radicalidade surrealista de Octávio Paz, e sim o emprego que faz de uma quase que "racionalidade ardente", tal como o verso de Apollinaire: 
          - Oh soleil ! C´est le temps de la Raison Ardente. (Sol ! Chegou o tempo da Razão ardente !).  
       O poema Mascaras del alba é o segundo poema de  La estación violenta (1948-1957):

    Máscaras da manhã.


Sobre o tabuleiro da praça
permanecem as últimas estrelas.
Torres de luz e bispos afiados
cercam as monarquias espectrais.
Pobre xadrez, ainda ontem combatiam os anjos !

Fulgor de água estancada de onde flutuam
pequenas alegrias já esverdeadas,
a maçã apodrecida de um desejo,
um rosto consumido pela lua,
o minuto franzido de uma espera,
tudo o que a vida não gasta,
os restos do festim da impaciência.

Abre os olhos o agonizante.
Esse fiapo de luz que atrás das cortinas
espia ao que purifica entre os estertores
é o olhar que evita olhar e olha,
o olho em que espelham as imagens
antes de despenhar-se, o precipício
cristalino, a tumba de diamante:
é o espelho que devora espelhos.


Olivia, pulsava com olhos translúcidos,
as brancas mãos entre as cordas verdes,
a harpa de cristal da cascata,
nada contra a corrente até a borda
do despertar: a cama, o feixe de roupas,
as manchas hidrográficas do muro,
esse corpo sem nome que a seu lado
mastiga profecias e resmungos
e a abominação das paredes vazias.
Boceja de tédio o real,
se repete em horrores desventrados.

O prisioneiro de seus pensamentos
tece e destece seu tecido às cegas,
escava suas feridas, soletra
as letras de seu nome, as dispersa,
e elas insistem no mesmo estrago:
se engastam em seu nome desgastado.
Vai de si mesmo até si mesmo, volta,
no centro de si pára e grita
Quem está? E a fonte de sua pergunta
abre sua flor absorta, centelha,
silva na haste, dobra a cabeça,
e ao fim, vertiginoso, desiste
rota como uma espada contra o muro.

A jovem domadora de relâmpagos
e a que desliza sobre o fio
resplandescente da guilhotina;
o senhor que desce da lua
com um fragrante ramo de epitáfios;
a frígida que gasta na insônia
o sílex sofrido de seu sexo;
o homem puro em cuja fronte aninha-se
a águia real, a franzida
voracidade de um pensamento fixo;
a árvore de oito braços nodosos
que o raio do amor derruba, incendeia
e carboniza em leitos transitórios;
o enterrado em vida com sua pena;
a jovem morta que se prostitui
e regressa a sua tumba na primeira aurora;
a vítima que busca o seu assassino;
o que perdeu o corpo, a sombra,
o que foge de si, e o que se busca
e se persegue e não se encontra, todos,
mortos vivos a bordo do instante
se detêm surpresos. Duvida o tempo,
o dia titubeia.

                      Sonolenta
em seu leito de lama, abre os olhos
Veneza e se recorda: pavilhões
e uma empáfia que se petrifica!
Oh esplendor naufragado...
Os cavalos de bronze de San Marcos
cruzam arquiteturas que vacilam,
descem verdinegros até a água
e se arrojam ao mar, até Bizâncio.
Oscilam massas de estupor e pedra,
entre os poucos vivos desta hora...
Mas a luz avança a grandes passos,
aplacando bocejos e agonias.
Júbilos, resplendores que se desgarram !
A aurora lança sua primeira lâmina.

Veneza, 1948.


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