10 de abr. de 2010

Crianças na rua principal (Betrachtung), Franz Kafka e Os Incompreendidos de F. Truffaut



  Certos temas nos cercam tanto que até o acaso conspira a favor deles. Ontem ao começar a ler ao acaso o primeiro livro de Franz Kafka, Contemplação, me deparei com o conto Crianças na rua principal e senti que eu continuava dentro do clima das peripécias infantis tal qual tentei empregar no poema da postagem passada. Também recordei de partes fragmentadas do filme Os incompreendidos de F. Truffaut.     
 
  Fragmentada é a apreensão da realidade do pequeno narrador de Kafka - a perspectiva do olhar infantil ao que acontece em seu redor. É importante o tratamento de Kafka aos movimentos físicos tão somente, como que restringindo com lógica o modo de operar a realidade do narrador, por se tratar de um narrador ainda criança e portanto mais afeito aos deslocamentos de imagens e da ação do que ao pensamento e a lógica. Antoine Doinel, o ator mirim do primeiro estandarte da nouvelle vague em 1959, também criava-se a partir de suas perambulações, segundo a expressão francesa, les 400 coups, ele literalmente pintava o sete e compunha cenas inesquecíveis expressando sua solidão infantil  em Os Incompreendidos.
   As crianças na rua principal tinham um senso de liberdade parecido. Kafka pinta as suas brincadeiras e, com o senso de movimentação como tratado acima, faz as cenas respirarem jovialidade, como nessa bela passagem:
                  Estacamos na ponte da torrente; os que tinham corrido à frente voltaram. Embaixo a água batia nas pedras e raízes como se já não fosse tarde da noite. Não havia motivo para que alguém não se atirasse por cima do parapeito. Detrás da mata à distância saiu um trem de ferro (...) Um de nós começou a cantar uma cantiga de rua, mas todos nós queríamos cantar. Cantamos muito mais rápido do que o trem corria, balançávamos os braços porque a voz não bastava, formamos com nossas vozes uma confusão na qual nos sentíamos bem.

   O incompreendido Doinel termina em um reformatório juvenil, já o incompreendido de Kafka, após despedir-se dos comparsas, refaz sozinho todo o percurso que acabara de fazer com os amigos, transbordando de vida e curiosidade:
                    Corri outra vez pelas trilhas do campo para a floresta. Eu queria ir para a cidade do sul da qual se diz em nossa aldeia:
                     "Lá existem pessoas - imaginem! - que não dormem!"
                     "E por que não?"
                     "Porque não ficam cansadas."
                     "E por que não?"
                     "Porque são loucas."
                     "Então os loucos naõ ficam cansados ?"
                     "Como é que os loucos poderiam ficar cansados?"
    
     

2 comentários:

  1. Acho que a inquietude leva tanto o menino do conto quanto Antoine Doinel a finais bastante parecidos. O menino sonha com a cidade do sul, onde há os loucos que não dormem e, de certa forma, faz o retorno para pegar essa estrada, deseja correr o risco de não dormir. Doinel foge do reformatório e na cena final chega ao mar, outro gigante maluco com tantos rumos possíveis e que também sequer cochila. Com a sensibilidade da infância, ambos são combatentes incansáveis da insônia que os cercam. Aliás, com a vida tão atribulada que lavamos, para realizarmos alguns dos sonhos precisamos encontrar um caminho que leva à cidade do sul com seus loucos incansáveis que nunca dormem.

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  2. “Os Incompreendidos” permanece o melhor filme sobre adolescentes já lançado.

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